Primeira Parte

Este tempo obriga a silêncio. Existe um rumor de medo, mas esse murmúrio não é importante nem pode quebrar os sorrisos. As duas frases anteriores são o sublime pensamento de Leonardo depois de dias e dias a refletir sobre o tema. Nunca foi dado a grandes pensamentos nem a vida o obrigou a que se sentasse, pensasse, voltasse a sentar e a pensar, e nesse levantar e pousar as ideias começaram a surgir, primeiro, obviamente, estranhas, como era possível pensar para além do normal comum dos dias e seguir para campos que unia ao que ouvia de outros nas miseráveis conversas televisas filosóficas, mas, depois, as ideias pareciam ter outra claridade, surgiam como constantes e o sentir dedicou-se a dar tempo ao pensamento, e as duas primeiras frases com sentido, para ele, que escreveu num papel velho e perdido numa das gavetas da casa, a lápis, são as duas primeiras frases, assim muito soltas e pensadas, e olhava para as frases e acreditava que, afinal, criar podia trazer algo de extraordinários e, sobretudo, palavras que nunca pensara, como silêncio, murmúrio, quebrar, sorrisos, e de onde vinham estas palavras, e o seu mundo de pensador começava a ganhar tons, embora não respondesse a nada concreto nem o levasse a nada mais do que pensar e descobrir que, afinal, pensava e o pensamento podia ser mais do que o que o limitava os frágeis dias que levava, embora não conheça o significado de frágil nem tal palavra pudesse ser dos seus pensamentos.

Quem era Leonardo?

Bastava olhar para os seus olhos de céu que se percebia a imensidão daquele pensamento. O céu não tem limites. O seu cabelo, curto mas com pequeninas ondas, eram o mar da sua mente. Magro, mas com uma postura de um nobre cavaleiro, dava-lhe um ar de sonhador, de um poeta. E, quem sabe no que aquele homem sonhador se tornaria.

Mas o mundo andava negro, com o aparecimento de um inimigo invisível que tantos países escandalizava. E Leonardo pensava no seu quarto, abalado e lírico, com o seu olhar cravado na paisagem da sua janela, o desejo de poder sair, ver os amigos, ser livre. Em casa sentia-se enjaulado. Mas Leonardo tinha de aceitar. O mundo mudara. Agora era ficar em casa, e esperar, mas sempre com o pensamento fora, livre e sem responsabilidades. E que vida essa a do pensamento. Ser livre não era bom, era tudo o que o corpo de Leonardo desejava, e sempre com o pensamento a evoluir esse desejo cada vez maior e mais voluptuoso, mais coerente. Contudo, o pensamento cada vez se tornava mais disforme e disperso, já enevoado pelo desejo que se alastrava não só na mente, mas também no interior quente do coração.

Sentou-se e sabia que tinha de permanecer em casa. A casa, um pequeno apartamento de três quartos, duas estreitas casas de banho que cheiravam a mofo no tempo frio, que, mesmo em abril ainda permanecia, uma magra cozinha e uma sala pintada a azul, como o céu estivesse sempre presente na casa, era divida com a sua esposa e dois filhos, um menino e uma menina, ainda pequenos, e que gritavam e deixavam todos os dias a casa num reboliço, o que levava Leonardo, por vezes, agora quase sempre, a gritar e a dizer para eles pararem por alguns momentos, e eles paravam, ele sentava-se, a esposa lavava as mãos, e podia então deixar alguns pensamentos seguirem rumo a algo que tentava descobrir.

Pelas leituras e atualizações constantes da praga, e as atualizações também já se tornavam um vírus que entrava e roía os alicerces do prédio, da cidade, de todos os espaços e do mundo, Leonardo tinha a certeza que as suas crianças podiam sorrir, correr e que a praga nada queria com elas, pois somente parecia preocupada com velhos e muito velhos, anosos, e que deixava as crianças continuar no seu tempo e lhes dava tempo para o mundo que tinham de criar. E ele sentia que para os seus filhos, para as crianças, tudo era muito simples, e para elas o tempo não obrigava a silêncio, o que o levou a pensar que a sua frase talvez não fizesse sentido algum, e deixava o seu olhar um pouco cansado e diluído no céu da sala, fixar-se ternamente nelas, agora um pouco sossegadas, e reparava que começavam a mover-se lentamente, pois para as crianças o tempo de estagnar são breves minutos, e já corriam novamente pela casa, enquanto a mãe lavava as mãos e parecia querer trazer em tanta preocupação e desinfeção, a praga para o interior de um lar que Leonardo queria sorridente e eternamente livre, mas não conseguia que assim fosse, embora tentasse e percorresse o mutismo do azul da sala na perplexidade do tempo e dos pensamentos que lhe moviam a liberdade.

Podia, hoje, dizer que, se não ligasse o vírus da televisão, que o mundo hoje era igual ao mundo que sempre foi e que sempre conheceu, e imaginava-se na padaria a mover os sacos de farinha, a juntar os ingredientes e a fazer as massas que, cuidadosamente, metia em grandes fornos e que as pessoas, os comentários não enganavam ninguém, deliciavam-se com aquele maravilhoso pão feito com a dedicação de quem sonha e pensa somente nessa sabedoria que vem do sol, dos milheirais e trigais que adormecem e são os lares dos pássaros e nos alimentam o amor, e isso Leonardo sabia, conhecia tudo sobre farinhas e pão, sobre os melhores lotes, as melhores terras dos milhos e centeios, os sabores inconfundíveis do sal e do fermento, e embora soubesse que a água não tem sabor, ele reconhecia que nem todas era iguais e o pão dependia também do sabor da água, e Leonardo, ainda no sofá, abriu os olhos quando viu o seu filho a cair à sua frente, e ainda fez um gesto para o ajudar, mas ele levantou-se e seguiu caminho, e acordou desse mutismo azul quando ouviu:

– Leonardo, preciso da tua ajuda. – chamou a sua esposa Alice da cozinha- Vai ver ao quarto da Margarida e vê o que ela está a fazer, que pode ter voltado a falar com os amigos imaginários dela.

Leonardo, silencioso, passou pela cozinha onde viu a Alice a cozinhar. Com um passo rápido, caminhou pelo corredor estreito de chão granítico até ao largo quarto da Margarida, sempre com a sua luminosidade habitual da manhã, que criava um espaço quente e vivo, com as bonecas da sua filha espalhadas pelo chão.

Abriu de mansinho a porta, e viu Margarida na sua cama carmim a brincar. Sorriu para ela: gostava de voltar a ter aquela ingenuidade e infantilidade que cada criança conserva no seu doce coração. Assim, como que enlevado pela nostalgia, fitou a brincadeira da Margarida segundos, talvez minutos, não interessava. Sabia que vivia feliz juntamente com as pessoas que mais amava, e isso é que interessava.

– Pai. – falou a filha, com um riso satisfeito, com os seus olhos também de céu e a mostrar as suas covinhas ao sorrir, com o cabelo acastanhado a cobrir-lhe a cara. – Queres brincar comigo? Ficas com esta boneca.

Leonardo ia dizer não, mas pegou na boneca e tentou fazer voz de menina. Margarida sorriu e disse que aquilo não era voz de menina, que tinha de treinar muito e não sabia se, mesmo a tentar e a tentar, alguma vez fosse conseguir, pois as vozes de criança têm os tons do sossego, da paz, da liberdade, das cores límpidas e dos sonhos, e as vozes dos adultos já não têm muito significado, significam sempre o mesmo, o rígido, o próprio da realidade, dos hábitos, dos percursos que os passos levam e trazem, sem muitas tonalidades e, embora isso Margarida não soubesse, nem Leonardo tinha refletido sobre o assunto, Margarida percebia que os sons das crianças trazem a pureza que os dos adultos nunca vão trazer, e sorriu para o pai, entregou-lhe um boneco, que ela disse o nome, mas ele não percebeu, Bernardo respondeu à pergunta da filha e ouviu novamente a voz de Alice a chamar, e disse de forma silenciosa a Margarida que ia ter com a mãe, e ela disse para ele se despachar, pois se a mãe chamou é porque precisa mesmo de ajuda, e Leonardo disse saiu do quarto, olhou o branco teto do corredor, a luz difusa, e os pensamentos continuaram a prosseguir lentos como o seu mover, muito lentos e a encontrarem um vazio que ele nunca procurou e fechava os olhos, apressava os passos, e seguia rumo a outro pequeno mundo de uma casa que aquecia com o calor que se aproximava, e Alice somente lhe disse para ir ver o rapaz, pois quando está em silêncio, deve andar a fazer alguma asneira, e que já não o ouvia a falar há alguns minutos, que não seriam muitos, e Leonardo deslocou-se para a sala e viu o filho entretido com um carrinho, um carrinho muito azul, muito céu, muito liberdade, que ele transportava no ar e tanto servia de avião como de carro de corridas, e essa infantilidade alegrava o coração de Leonardo, fazia-o sorrir, muito, muito, e isso ele não via, mas o seu rosto ficava iluminado, tanto com o rapaz como com a menina, pois o amor não era dividido e, como a criar pão, sabia que tinha de dedicar toda a sua energia com intensidade aos dois, com um afeto sem fim, mesmo que por vezes pudesse parecer distante, mas os filhos não sentiam isso, e viam nos pais essa dedicação e ternura constante.

O rapaz, de nome Júlio, com os seus dois anos, já era muito malandro. Falava, mas sempre com dificuldade a dizer os “r” ou “l”, uma dificuldade que representava a sua ingenuidade no mundo. Mas, apesar destas características de criança, adorava chatear a sua irmã, já com os seus oito anos. E, cada vez que a Margarida se mostrava irritada, ria-se com uma felicidade infinita, e só se sentia mais incentivado e mais apto a irritá-la.

Só os carros o acalmavam. Aqueles objetos sobre rodas em miniatura criavam um êxtase total na criança. Com os carros tudo era possível em histórias e programas de televisão. E, mais uma vez, também Leonardo contemplava o seu filho, sempre com o seu sorriso aberto habitual.

Júlio era diferente da irmã: era moreno, com os olhos escuros, tal como o seu cabelo ainda curtinho com a sua idade. O que mais Leonardo gostava de Júlio era a sua capacidade que ele tinha para estar sempre feliz. Um dom exímio. Quem sabe? No futuro, o Júlio ainda poderá ser assim, sempre com um sorriso e a sua personalidade indestrutível, inabalável.